terça-feira, 21 de abril de 2009

Nublado

Desabou. Pensou estar sentado em mais um desses bares onde ninguém se conhece, mas todos se cumprimentam; contudo não estava. Estava sentado em seu sofá embriagado pela sua existência, perplexo entre a vigília e o real quando de súbito perdeu os poucos sentidos que ainda lhe restava. Submerso, preso em seu próprio mundo de sonhos grotescos e imagens sombrias. Onde estava dentro de suas próprias sensações, incontroladamente disparadas por desejos vazios. Sendo assim foi mais fundo em sentidos antes inabitados. Caminhou por entre pés de oliva que ainda estavam a florescer.

A aurora lhe chegou cinzenta entre a vegetação verde e o cimento que crescia a poucos metros dali. A cidade acordava aos sons das urgências das ambulâncias, carros de polícia, britadeiras, gritos por socorro em um estupro numa esquina remota, brigas de casais, bebês chorando, crianças agonizando e homens silenciosos cansados da rotina de subir e descer as mesmas ruas por onde suas almas já jaziam há muito.

No campo, em meio a prédios e ruas, a geladeira aberta dava a entender que o calor poderia ser superado pelo gelo que brilhava dentro do congelador agora aberto. Gelo sem uísque não serve, pensou. A garrafa de Jack Daniels estava entre as folhas e os frutos de oliva, deitada, descansando na terra.. Pegou-a. Deixou que aquele líquido rasga-se seu corpo. Pediu, implorou para que aquele líquido o consumisse.

As amarras vieram. Deitaram-se ao seu lado. De tanto se olharem, conversaram. As amarras comentaram baixo, sutil em seu ouvido esquerdo, que elas eram desnecessárias. Por que não vão embora, então; perguntou. Quem nos criou e quem nos alimenta é você. Só você pode fazer com que o deixemos; retrucaram. Não posso...se me desfizer de vocês nada mais terei; respondeu ele meio atordoado.

Nem sempre o que dizem é verdade, na verdade a verdade não existe. Nada é intocável, tudo se pode e tudo se é, depende de quem olha, disse para si um pouco zonzo da conversa que acabara de ter. Em meio a divagações percebeu que ao menos o que ele tinha ou sentia era sua verdade, e ninguém, ao menos por agora poderia transpô-la. Irei para o inferno por todas as coisas sujas que penso, essa é minha verdade, diz ele em voz calma. Sente-se triste por pensar assim, um pessimista em meio a olivas. Sabe ele que a cidade está logo ali como suas ondas sonoras a lhe perturbar. Como se aqueles sons já não fossem suficientemente ruins, o modo como sua vida estava e a maneira com que ele se relacionava com as coisas e o mundo é o incomodava ainda mais. Talvez o pior fosse talvez o fato de sua vida não mais lhe pertencer e saber que ela está por aí a sua espera pronta para ser vivida. Esquecerei desta ingrata, pensou. Nada como uns devaneios para deixar viva a penumbra que insiste em preencher seu âmago. O que mais o indigna é não ser reconhecido por aquilo que acredita fazer de melhor. A arte nunca esteve longe dele, pelo contrário sempre caminhou de mãos dadas a seu lado fazendo-lhe afagos.

Os dias se sucederam na plantação de olivas. Ele já não era mais aquele de antes depois de tanto inércia que os dias ali, naquela vegetação, trouxeram. Deixou as enfermidades de lado, os olhares perdidos e a vontade de escapar para trás. Fez das olivas sua nova morada. Não queria mais, como anteriormente, resgatar sua vida que estava por aí a vagar em algum sítio, mas sim queria deitar sua cabeça na relva que hoje parece um pouco mais doce que antes e esquecer-se de viver. Esquecer-se do que é necessário e contemplar apenas o entardecer de mais um dia sem saber se para ele um novo chegará.

* escritos em itálico por Fernando Chinaski