quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Terra, buceta e almas perdidas (parte 1)

Atirou-se na lama. A necessidade vinha sempre que passava de ônibus pela encosta enchardada pela chuva. Precisava estar em contato direto com aquilo. Sem metáforas ou anedotas. Lama feita de barro e água. A ideia anterior de lama deu lugar a experiência vivida. O contato com ela era mais do que uma vivência. Era experiência estética, capaz de mudar conceitos de lugar, transformar, levar à ação.

Nunca foi afeito a tomar atitudes. Sempre deixou a vida seguir seu rumo. Só agora isto o incomodava. Lavou-se na lama. Seguiu o restante do caminho a pé. Quase dois quilômetros de aventura, em um acostamento fino, até sua casa. Todo o barro, impregnado em suas roupas e cabelos, se dissipava com a chuva torrencial. Sentia-se louco, talvez o fosse, mas enganava bem. Sua apatia corriqueira deu lugar aquele gesto determinando uma possível guinada. "Lama não são os bares, a mulheres e toda a loucura da noite, lama é isso no meu rosto.", pensou.

Banho tomado. Roupa de dormir. Comida esquentando no fogão. O cansaço da caminhada e o dia extenuante no trabalho contribuiam para seu desperezo com o que o mundo lá fora poderia lhe dar. Encheu a barriga. Abriu uma cerveja e ligou o som. Abriu outra cerveja. Aumentou o volume. Tomou uma dose de bourbon. Aumentou o volume. Abriu mais uma cerveja e foi para o quarto se trocar.

- Alô?! Quem é?!
- É o Bento! Vamos sair?!

Letícia entendeu o recado e disse que o buscaria em uma hora. Não combinaram lugar ou o que fariam. Decidiriam no caminho para o Centro. Meio bêbado, Bento estava ansioso para deixar sua casa. De uma hora para outra a lama se instalou novamente e viu seu rosto tomado pela terra molhada.  A maquiagem estava ótima e ele ansioso para mostrar a ela. Letícia, sua amiga há anos, era um pouco disléxica, apesar da inteligência. Odiava lugares cheios, pessoas burras, conversas sobre o nada, fofocas e vivia cercada de gente interessante. Nunca teve um namorado. Não acredita em amor, só em sexo. Tem pouco interesse em relações em que possa se sentir presa, seja quais elas forem. Em seus 29 anos o tédio nunca lhe sorriu. Sua cabeça explode de ideias e seu trabalho, como artista plástica, a satizfaz por completo. Já Bento tenta lidar com seu demônios desde que se entende um homem. Analista de marketing, ele não suporta o emprego e se vê dia após dia atolado em desesperança. Suas aspirações parecem longe de deitarem em sua cama. A única coisa que o salva é sua vida noturna. Bebidas, drogas e cada vez mais mulheres. A tríade universal.