O aproximar da manhã não deteve o ímpeto. As luzes já não faziam sentido acesas, as pessoas rumavam ao trabalho e ele, mais uma vez, estava ali, deitado na garagem. A música tocava alta, as garrafas estavam quase todas vazias. As cápsulas com pó já haviam sido cheiradas com esmero. Todo o branco estava guardado no caminho das narinas aos pulmões. Ao seu lado ninguém para falar, apenas pilhas de discos, livros, uma geladeira velha, sujeira, sobras de madeiras, dois cinzeiros, três maços de cigarros vazios, um pela metade, duas cadeiras, um banquinho, o controle remoto do som, o violão, dois abajures, e uma camisa jogada. Ele caído, não se importava com o dia, com o que pudessem dizer sobre ele, sobre como se portava. Gostava do frio dos ladrilhos do chão. Sentia-se confortável neles, tragando o cigarro levemente. Sempre achou que nunca cresceria, mas sempre soube da verdade. Estava cada dia mais velho, com mais responsabilidades, com mais dinheiro e com mais vícios. Aos trinta e dois tudo parecia trazê-lo para os dezesseis, assim como quem perde metade da vida. Ao se movimentar, lembrava quando fazia isso na casa dos pais, quando esses viajavam no fim de semana. Sempre sozinho, se expor nunca foi seu forte, brincava de se esconder na garagem e usar todas as drogas que pudesse adquirir. Nessa época os cachorros ainda lhe davam a esperança de dias melhores. Hoje nem isso possui. Deita sozinho e finge que o presente é o passado, não pela nostalgia. Acredita nos sonhos da época, atualmente gastos. Se lutou durante os anos subsequentes foi por mera falta de tato, pensa. Nada poderia vir de bom daquele ser. Fadado ao fracasso, pois assim quis crer, deixou-se contaminar por ínfimas mazelas. Não sabe ele que quando tirava o carro para dar voltas e mais voltas pelo estado com os amigos era admirado pelo humor e inteligência. Nunca parou para refletir sobre suas conquistas e se agarrou como nunca em pequenas derrotas, se julgou derrotado antes de levar o primeiro soco. A fraqueza o manteve inerte. Esqueceu dos dias de sol, das maravilhas de ter crescido sem um arranhão e ter feito de tudo para acumular mais que três ou quatro traumas sérios no organismo. Sem contar nos dias em que sorriu e se divertiu como se não houvesse amanhã, sem se deixar incomodar por nada. Trabalhou e trabalha não só para o sustento. O labor permite-lhe diversões e uma vida agradável. Para ele tudo isso pouco importa, o chão é onde deve estar, segundo sua cabeça. Não que não possa também estar nele. A ideia é que lhe grudou igual piche. Asfalto quente e pegajoso sugando o corpo. Um buraco negro achatando toda sua massa corpórea.
- Venha, vou buscar um pão. Já está de dia. Fazem mais de dezoito horas que não coloca nada no estômago.Vamos, levante.
- Me deixe. Estou bem aqui. Tá escutando. É o barulho da agulha. Preciso trocar o disco. Esse já era. Calma aí. Vou pegar mais uma cerveja e um cigarro. Esse som vai te fazer pirar.
- Por hoje chega. E o trabalho?
- Tô de licença médica. O psiquiatra que me passou. Preciso desse tempo pra me recompor. Porra. Tu não sabe de merda nenhuma e tá me enchendo. Vai tomar no cu. Me deixa aqui.
- Cara, tu tá tão louco que tá tendo alucinação. Tu tá falando contigo. Esse sou você.
- Foda-se, cala a boca então.
Música alta mais uma vez. Corpo cambaleante. Luzes apagadas. Dez da manhã. Ele dança. Canta. Não há espaço para choro ou lamentação. Conformou-se com o estado atual das coisas. De fato possui mais dez dias de atestado e assim quer passá-los. Isolado do mundo. Com drogas, música, literatura e cinema na cabeça. Uma decisão tomada. Boa ou ruim ainda é uma escolha. Já subiu em árvores com medo de apanhar. Já pulou muros para roubar cana de açúcar na infância. Já arremessou garrafas vazias em bancos. Já foi um atleta. Já escreveu contos, poemas, canções. Já viajou, se mudou, leu e estudou mais que muitos. Já morreu e nasceu tantas vezes. Mas nunca deixou de ser uma coisa, triste. Nem ele sabe os motivos.
- Qual o motivo da sua tristeza? (psiquiatra)
- Não tenho ideia. Me habituei a ela e ela a mim. Nos tornamos amigos e não deixo amigos na mão. (ele)
- O que te fez amigo da tristeza? (psiquiatra)
- Sempre flertamos. Acho que ela possui algum tipo de beleza. A dor me permitiu esconder de muita coisa. De mim principalmente. Tenho medo do que posso ser, e do que imagino ser. Talvez por isso me agarre a ela, pois sei que com ela não precisarei ser nada. (ele)
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
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5 comentários:
Excelente. Só isso.
tks bro!
bom que eu to "bem" por agora... se eu leio esse soco no estômago ha um tempinho atrás, nem saía de casa, rs belo texto!
Do Caralho, velho!!!
As palavras finais do personagem, quando explica ao psiquiatra sua atração pela solidão, putz... Me vi refletido.
Um dos seus textos que mais gostei!
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